Déjà Vu
-Fiquem à vontade para ver o capítulo 5 do
livro. Talvez eu faça uma prova surpresa na próxima aula, então... Se eu fosse
vocês leria o capítulo. Bem, mas é só um conselho, aleatório. Não é como se
fosse mesmo ter uma prova surpresa dia 23 de outubro. Nada disso. Não tem nada
a ver mesmo, e se vocês... - A voz da professora de física foi interrompida
pelo ruído estridente do sinal. Todos os cadernos foram fechados abruptamente.
Todos os alunos fugiram da sala de aula como se fugissem de uma prisão.
Era uma rebelião diária.
Sabrina Dominguez acostumou-se com aquela
rotina, porque ensinar física era sua paixão. A escola era o lugar aonde ela
sentia que pertencia e, de tempos em tempos, alguns alunos a faziam ter a
sensação de dever cumprido. E aquela manhã mormacenta de primavera parecia ser
um desses tempos.
Lá no fundo da sala, como um ser antissocial,
estava uma garota escondida atrás de óculos de aros grossos. Atrapalhada e
aparentemente triste, fechava um livro pesado e o enfiava na mochila colorida.
Levantou-se com os ombros caídos, olhar fixo no chão e lábios contraídos. Lembrou
os tempos de criança da própria "Sabrina quatro olhos", numa época
em que ser nerd não era algo tão
legal.
-Aurora..? - A professora usou de sua
autoridade para chamar a aluna, que olhou para trás sem qualquer vestígio de
expressão.
-Sim, srta. Dominguez.
-Aproxime-se. - Ela continuou. A garota
percorreu a sala até o birô, e parou de andar, removendo a mochila do ombro,
deixando-a encostada à perna, no chão. - Aconteceu alguma coisa? Você não
parece muito bem. - A garota de 15 anos encolheu os ombros, como se não
houvesse qualquer problema.
Mas os lábios contraídos permaneciam ali,
incapazes de mentir.
-Posso ir?
-Pode. Boa tarde pra você. Estude as páginas
110 à 113. Vou tirar as questões de lá. - Sabrina piscou para a aluna, que
ergueu as sobrancelhas, impressionada por um segundo. A tristeza escorreu por
seu semblante mais uma vez, e ela deixou a professora sozinha na sala de aula.
Aurora Vilaça viu todos os alunos saírem e,
como fazia todos os dias, propositalmente, esperou para ser a última a deixar a
sala de aula. Não queria ouvir as provocações e as piadas que as garotas de
cabelos bonitos e olhos claros geralmente faziam. Deixou a sala de aula e
arrastou os pés pelo corredor vazio, quase agradecendo a professora por ter
atrasado ainda mais sua saída, assim não havia sequer um adolescente por ali.
O sol inclemente da primavera castigava o pátio
e os olhos desacostumados de Aurora arderam ao alcançá-lo. Para sua má sorte,
um grupo de garotas conversava animadamente e ria de algo muito engraçado. A
bicicleta de Aurora estava estacionada ao lado daquele grupo, e ela tomou um
fôlego longo, antes de continuar a andar.
Pensou em diversas maneiras de fingir que
estava sozinha, e imaginou-se em uma bolha de invisibilidade. Em nenhum momento
fez contato visual com as meninas. Aurora conhecia uma delas. Amanda tinha
cabelos castanhos e belos olhos azuis que conquistavam todos os garotos da
turma. Seu sorriso era aparentemente distraído, mas Aurora sabia... Amanda era
incapaz de compreender qualquer ideia minimamente inteligente. Era burra como
uma porta.
-Ei... Vejam só, meninas. - Amanda riu. - Vocês
já viram algo tão desengonçado?
-Não mesmo. Olha só o chapéu dela. - Outra
falou, com uma risada ácida.
-E essa mochila? Parece que saiu do Festival
Burning Man... - Uma terceira comentou.
-O que é o Festival Burning Man? - Amanda
indagou. - Não importa. - Riu mais uma vez. Aurora pegou sua bicicleta e
retirou o cadeado, para seguir ir para casa sem precisar ouvir mais asneiras
das garotas. - Ei, menina! - Ouviu Amanda chamar. - Ei! Eu falei com você! - Aurora
não se conteve e fitou o grupo de meninas, que se aproximava.
-O que vocês querem?
-Você vai estudar pra prova de física, não vai?
-É o que eu deveria fazer.
-Pois deveríamos fazer juntas. - Amanda parecia
excitada com a ideia que acabara de ter. As outras seguidoras a observavam com
estranheza. - Estou sem tempo para estudar porque tenho uma vida social para
manter. Imagina que só nesse fim de semana eu tenho três aniversários para ir?
Um deles vai ser uma festa à fantasia, só os nerds descolados vão estar lá, e
tal. Acho que não vou dar conta disso.
-Claro que vai, Mands. - Uma das seguidoras tocou
seu ombro, em forma de apoio.
-Mas você sabe que eu preciso arrumar um look
decente para aparecer em todos esses eventos, e não quero repetir o cabelo em
nenhum deles. Você sabe o quanto é difícil? Já não basta repetir a cor da unha?
É desgastante... E o João Paulo fica no meu pé. Ele tem que entender que eu não
quero mais garotos do ensino médio. Você já viu os garotos da faculdade? Eles
sim são bonitos. E aqui em Santa fé eles vem de todas as partes de Minas. É
incrível. Não preciso ficar com meninos do terceiro ano. - Amanda soltou uma
avalanche de palavras.
As únicas que Aurora ouviu e ainda tentava
juntar eram Nerds e Descolados. Para a garota que usava óculos de aros grossos
e tinha cabelos lisos amarrados em um rabo de cavalo, as duas palavras não
faziam sentido juntas. Nenhum sentido.
-E então? - Amanda cortou os pensamentos de
Aurora.
-Então o que? - A garota perguntou, e as outras
riram. Quando as gargalhadas cessaram, a expressão de Aurora fez com que Amanda
suspirasse.
-Você quer ir à festa com a gente? Estudamos
depois da festa. E então?
-Ah... Eu? - As meninas riram mais uma vez.
-É uma festa à fantasia, então você pode
aparecer lá em casa às oito e a gente te leva.
Aurora não ouviu muito além. Ela estava
perplexa o suficiente para aquiescer com a cabeça para tudo o que Amanda dizia.
Nunca havia sido convidada para participar do círculo social de ninguém, e a
possibilidade de aquilo acontecer parecia tão distante que, quando aconteceu, a
cegou para uma realidade totalmente crua e impiedosa.
Dolorosa.
Todos os amigos de Amanda Cavalcante estavam
parados à espreita das janelas que davam para a frente da casa dela. Havia
gente escondida no primeiro andar da casa e atrás das cortinas das salas no
andar inferior. Quando o carro da mãe de menina esquisita parou à frente da
casa, todos riam baixinho e os mentores da brincadeira pediam silêncio. Amanda
correu até a porta e passou os dedos pelos cabelos, penteando-os. Um
formigamento leve provocado pela ansiedade subia por seus membros inferiores, e
ela não conseguia parar de sorrir.
Abriu a porta radiante, e viu quando a garota
desajustada cujo nome ela tentava lembrar tropeçou na calçada, antes de
continuar a andar na direção da entrada da casa. Estava vestida com uma fantasia
improvisada de algum desenho que Amanda pessoalmente não conhecia. Algo entre
Dexter, do Laboratório de Dexter, e médico idiota, com um jaleco branco e
aquele óculos enorme de aros grossos.
-Oi, Amanda... Então... Você ainda vai se
arrumar? - A menina parecia ansiosa pela festa. Amanda não conseguiu controlar
a risada e concordou com a cabeça.
-Mal posso esperar...
Era a deixa. Todas as luzes da casa se
acenderam e apagaram e as janelas se abriram. As pessoas se amontoaram nos
espaços abertos e jogavam papel higiênico e sprays de espuma branca. Os olhos
da garota desajustada se arregalaram e ela deu alguns passos para trás. Toda
aquela cena era tão divertida que Amanda ainda não conseguia esconder a
excitação. Ela bateu palmas repetidas vezes, e deu alguns gritos. Todo o papel
higiênico voava pelo ar e caía sobre a garota, que, àquela altura, chorava.
Amanda não compreendeu o porquê do choro. Era apenas uma brincadeira da época
de Halloween, uma festa muito comemorada em Santa Fé.
A menina deu as costas e correu para a rua,
desaparecendo pela noite de brisa morna.
Aurora correu até a esquina mais próxima e
ligou para a mãe. Escondeu-se entre os arbustos e se agachou. Sentia o odor de
grama molhada e as baforadas da brisa úmida dos jardins das casas naquela
vizinhança. Abraçou o próprio corpo e se permitiu sentir uma dor extenuante que
cruzou o corpo.
Humilhação.
Quando o carro da mãe finalmente entrou na rua
em que ela estava, Aurora ergueu-se e sacolejou os braços no ar. No caminho de
casa ela viu que a mãe estava preocupada, e a humilhação pareceu ainda pior
sentada no banco do carro, arrumada para uma festa à fantasia, com os olhos
molhados e o nariz inchado de tanto chorar, como uma fracassada. Evitava fungar
ou soluçar para não chamar atenção e trazer perguntas indesejadas, mas a mãe
não lhe dirigiu a palavra, nem para consolar. Aurora agradeceu internamente por
isso.
O caminho da porta da casa até o quarto foi
longo demais. Ela retirou o jaleco assim que desceu do carro e colocou a
mochila nas costas. Sentiu o peso dos livros, da roupa de dormir e dos produtos
de higiene pessoal nas costas, e pensou na tarde perdida arrumando a bolsa para
dormir na casa de Amanda. O nó em sua garganta se tornou ainda mais difícil de
suportar.
Mas a porta do quarto se fechou. Ela deixou a
mochila cair ali mesmo e foi até o espelho. Esfregou o rosto com uma toalha e
retirou os vestígios da maquiagem discreta que a mãe fizera nela, mais cedo. O
resto da fantasia foi ao chão em poucos segundos e Aurora tomou um banho
demorado. A água caía sobre sua cabeça e massageava seus ombros, mas quando os
olhos dela se fechavam, as únicas lembranças na memória eram de papel higiênico
e espuma flutuando no ar. Ainda ouvia os gritos, vaias e risadas.
Mas a porta do quarto estava fechada. Ela
sentiu-se protegida dentro do cômodo. E, depois do banho, desfez a mochila,
retirando o livro e o caderno de física. Pensou que ao estudar esqueceria toda
aquela história, e, com sorte, no dia seguinte ninguém lembraria.
Aurora sabia que seria piada por alguns meses.
Sua escrivaninha era grande, coberta de livros
e anotações que ela fazia com frequência, sobre assuntos que gostava de estudar.
Eram de cultura em geral, além das disciplinas do colégio. Curiosa, se
aventurava pelos mais variados campos, porque gostava de aprender. Sua
disciplina preferida era física, porque ali ela entendia como o mundo
funcionava. Era uma explicação universal para cada uma das perguntas que
habitou suas dúvidas de criança.
E, por um momento, ela esqueceu-se de tudo o
que havia acontecido pouco tempo antes.
Abriu o livro na página 110, como a Srta.
Dominguez recomendou. Teoria da relatividade de Einstein. Pegou o marca-texto
para grifar as partes mais interessantes do texto, e pôs-se a ler. Depois de
alguns minutos a leitura tornou-se interessante, porque falou de um tema
fantástico. A possibilidade de viagem no tempo, segundo a teoria de Einstein,
um tópico aberto para debates e estudos até aquela data.
Segundo a teoria, a gravidade em objetos
maciços como estrelas e buracos negros fazia o espaço se curvar. Algo que
Einstein chamava de Espaço-Tempo. Espaço-Tempo curvado significava Tempo
curvado, que significava a possibilidade de viajar ao passado. E isso seria
possível através de outra Teoria de Einstein. Cordas cósmicas supostamente
criadas um segundo após o Big Bang seriam longas e gigantescas, com massa densa
e pontos de gravidade que fariam o Espaço-Tempo se curvar. Einstein foi além, e
teorizou sobre a possibilidade de manipular cordas cósmicas e buracos negros para
viajar no tempo. Até construir buracos de minhoca para isso.
Viajar no tempo...
Aurora sonhou com a possibilidade de mudar seu
passado e apagar aquele dia. Viu que o livro indicava diversos filmes que
exploraram o tema de viagem no tempo. Feitiço do Tempo, A Máquina do Tempo,
Efeito Borboleta, De Repente 30, De volta para o Futuro, De volta para o Futuro
2.
Os olhos da menina se arregalaram. Lembrava do filme
De volta para o futuro 2. Naquela história o personagem principal viajava para
o futuro, exatamente para o dia 21 de Outubro de 2015. Aurora ergueu as
sobrancelhas e pegou o celular, olhando a data daquela noite. Somente a luz do
abajur em seu quarto estava acesa, e focava os livros abertos sobre a
escrivaninha. Quando a tela se acendeu, ela viu.
21 de Outubro de 2015.
Aquela era a data em que Marty McFly chegara ao
futuro.
Aurora riu sozinha, e viu a coincidência como
um motivo para descontrair sua tensão. Ela não queria lembrar do fato
acontecido mais cedo. Tentava não pensar naquilo, e quanto mais não pensava,
mais próxima estava de um buraco de minhoca, como os que Einstein propôs em seu
estudo sobre a relatividade, Espaço-Tempo, as quatro dimensões, o passado, o
futuro... Um carro voador e um cientista maluco. Sua cabeça girava em vários
pontos e ela apoiou a testa sobre um livro, fechando os olhos por alguns
segundos. Até sentir uma brisa mais fria nas costas e reabrir os olhos.
A menina girou o corpo e tomou o fôlego,
pulando da cadeira. De pé, arrastou-se até a porta do quarto, colando as costas
na superfície de madeira, assustada. Próximo à sua cama havia um buraco feito
de luz e ondas rarefeitas de ar. Tremulava como a superfície de um rio depois
de jogar uma pedrinha. Parecia com os efeitos especiais dos filmes aos quais
Aurora assistia na TV. Tinha aproximadamente um metro de diâmetro e era como
uma falha no tecido da realidade. Ela colocou as mãos sobre a boca e esperou
parada. Esfregou os olhos e fitou o buraco novamente, arfando admirada.
O buraco tremeluziu, como se esperasse pelos
próximos movimentos dela. Aurora caminhou cautelosamente até ele e estreitou os
olhos. Buscava enxergar o que havia lá dentro e não percebeu quando foi
engolida pela luz. Ela se deixou levar pela corrente.
A primeira coisa que enxergou foi o caderno
aberto na matéria de física e a caneta preta que usou mais cedo. Ergueu os
olhos e deu um salto na cadeira. Somente um menino de cabelos longos e
desgrenhados ao seu lado notou o sobressalto, e a fitou como se a entendesse.
Era perfeitamente normal adormecer na aula de física e acordar no susto.
-Fiquem à vontade para ver o capítulo 5 do
livro. Talvez eu faça uma prova surpresa na próxima aula, então... Se eu fosse
vocês leria o capítulo. Bem, mas é só um conselho, aleatório. Não é como se
fosse mesmo ter uma prova surpresa dia 23 de outubro. Nada disso. Não tem nada
a ver mesmo, e se vocês... - O sinal tocou, e os olhos de Aurora se
arregalaram.
Ela percebeu que estava no passado. Observou
todos os alunos correrem para fora da sala e o semblante cansado da Srta. Dominguez.
O ar condicionado quebrado fazia com que a sala, àquela hora do dia, tivesse
ares quentes de um mormaço quase infernal. Aurora passou as costas da mão pela
testa e levantou-se para juntar seu material, ainda aturdida sobre o que estaria
acontecendo.
-Aurora..? - Ela ouviu a professora chamar.
Caminhou até o birô da Srta. Dominguez, com a
mochila nas costas, e esperou pelo que ela falaria. Ela já sabia que a mulher
perguntaria se ela estava bem. Estranhamente, Aurora sentia-se ótima.
-Sim, Srta. Dominguez.
-Aproxime-se. - A professora queria que ela
chegasse mais perto, e assim ela fez. - Aconteceu alguma coisa? Você não parece
muito bem. - Aurora meneou a cabeça, dando de ombros. Queria poder dizer que
voltara ao passado e que aquela era a coisa mais maravilhosa que havia
acontecido em sua vida, mas fingiu um semblante triste, para poder passar sem
suspeitas.
-Posso ir?
-Pode. Boa tarde pra você. Estude as páginas
110 à 113. Vou tirar as questões de lá.
Aurora acenou para a professora e saiu da sala
depressa. Queria correr até o estacionamento para gritar com Amanda e socar sua
cara bonita de olhos claros e sorriso perene. Até pensar no porquê de ter
voltado no tempo. Em todos os filmes e livros aos quais teve acesso sobre o
assunto de viagem no tempo, havia alguma missão para ser resolvida e os
personagens só retornavam ao presente depois de resolver todo o problema. Seu
problema era claro, ela sofrera com uma humilhação diante de todos os
adolescentes da cidade de Santa Fé.
Mas a solução era obscura para Aurora.
O sol inclemente daquela hora era marcante. Ela
lembrava dele, e do grupo de meninas. Ao vê-las ali, sentiu medo. Sabia que
elas a abordariam e dariam o bote. Sabia que elas queriam pregar uma "peça
de halloween" nela, e queria esmagar a cara delas no asfalto, mas pensou
em uma solução. A mais correta pareceu ser a que ela usou. Pegou sua bicicleta
como havia feito antes, soltou o cadeado, ouviu as piadas com o festival do
Burning Man, e esperou Amanda chamá-la.
-Ei! Eu falei com você! - Aurora olhou para
trás, e viu que elas pareciam ardilosas. Algo que não havia reparado antes. A
nova perspectiva deixou a intenção delas muito mais clara.
-O que vocês querem? - Perguntou, para fazê-las
falar sua proposta.
-Você vai estudar pra prova de física, não vai?
-É o que eu deveria fazer. - "E vocês
também." Aurora pensou.
-Pois é o que nós deveríamos fazer juntas.
Estou sem tempo para estudar porque tenho uma vida social para manter. Imagina
que só nesse fim de semana eu tenho três aniversários para ir? Um deles vai ser
uma festa à fantasia, só os nerds descolados vão estar lá, e tal. Acho que não
vou dar conta disso.
-Claro que vai, Mands. - A outra falou. Aurora
engoliu em seco para não jogar a bicicleta em cima de Amanda e quebrar um dente
dela, para ela ter mais um problema no fim de semana para dar conta.
-Mas você sabe que eu preciso arrumar um look
decente para aparecer em todos esses eventos, e não quero repetir o cabelo em
nenhum deles. Você sabe o quanto isso é difícil? Já não basta repetir a cor da
unha? É desgastante... - Ela continuou a tagarelar por algum tempo, e Aurora
esperou ansiosamente pelo convite. - E eu queria que você fosse a essa festa.
Leva suas roupas, vai fantasiada e a gente estuda depois da festa. E então?
Aurora sabia que aquela era sua deixa.
-Então... O que? - As meninas riram, mas antes
que as gargalhadas pudessem cessar, Aurora continuou. - Hein, Amanda? Essa
festa vai ser na casa de quem? Na sua? E o que os seus pais vão achar dessa
festa quando souberem? E quando souberem que você vai encher a casa com seus
amiguinhos pra fazer uma "brincadeira" comigo? Hein? Então o que?! -
Ela falou agressivamente para Amanda. O semblante chocado da outra parecia
genuíno.
-Do que você está falando, sua louca?
-Não se faça de desentendida. Eu conheço você.
Já vi De repente 30 e sei que não posso confiar em gente como você. E você pode
ser o sujo e o mal lavado agora! Você é burra e acha que pode fazer os outros
de burros também? Não pode! Não tem esse direito!
O sol começou a se distorcer em uma luz
especialmente forte. A voz de Aurora começou a vacilar e o estacionamento
desapareceu. O rosto de Amanda e suas amigas esvaeceu, deixando seus esqueletos
à mostra até desaparecerem também. E a garota sentiu o corpo ser puxado por uma
corrente forte que a levou para o nada. Com mais alguns estalos em sua mente, e
o ar foi roubado dos pulmões dela.
Quando voltou a si, Aurora estava sentada em
sua cadeira, na sala de aula.
-Fiquem à vontade para ver o capítulo 5 do
livro. Talvez eu faça uma prova surpresa na próxima aula, então... Se eu fosse
vocês leria o capítulo. Bem, mas é só um conselho, aleatório. Não é como se
fosse mesmo ter uma prova surpresa dia 23 de outubro. Nada disso. Não tem nada
a ver mesmo, e se vocês... - O sinal tocou. Aurora viu todos os alunos correrem
mais uma vez e cerrou os dentes. Voltou ao começo. Aquilo devia ter algum
significado.
Ergueu-se e fechou os cadernos, serrilhando os
dentes e soltando o ar pela boca depois. Precisava pensar. Tinha que entender o
que estava fazendo de errado. Em qual ponto deveria agir. Mas já não sobrava
paciência. Ansiava por vingança contra Amanda e a possibilidade parecia cada
vez mais complicada. Até uma ideia absurda e sombria passar por sua mente.
Precisaria fazer tudo da forma correta, ou ficaria presa naquele looping
temporal para sempre.
-Aurora..? - A Srta. Dominguez chamou-a, e ela
virou-se para a professora.
-Sim, srta. Dominguez.
-Aproxime-se. - Aurora caminhou até ela esperou
pelas perguntas. - Aconteceu alguma coisa? Você não parece muito bem.
-Não, posso ir? - A garota tentou não parecer
impaciente, porém, não conseguiu. A professora não se importou com o tom usado
por ela, e sorriu condescendente.
-Pode. Boa tarde pra você. Estude as páginas...
-110 à 113, eu sei! Vou tirar dez! Até semana
que vem, Srta. Dominguez! - Aurora se adiantou para sair da sala de aula.
-É... É... 110 à 113... - A professora perplexa
ficou dentro da sala, sentada, fitando o nada.
Depois da caminhada pelos corredores vazios até
o estacionamento, veio a compreensão. E Aurora arquitetou seu plano. Soltou sua
bicicleta, desprendeu o cadeado, evitou as meninas até Amanda falar consigo,
foi até elas, conversou com elas e viu que, a cada vez que revivia a situação,
Amanda parecia mais cruel. Ela tagarelava sobre João Paulo, sobre meninos da
faculdade, sobre looks de festas e outras frivolidades, e fez a proposta para
Aurora, que seguiu o roteiro, como já havia acontecido antes.
-Então... O que?
-Você quer ir à festa com a gente? Estudamos
depois da festa, amanhã de manhã. E então?
-Ah... Eu? - Ela ouvia as risadas, o olhar
frígido de Amanda, e esperava.
-É uma festa à fantasia, então você pode
aparecer lá em casa às oito e a gente te leva.
-Certo, eu vou. Chego na sua casa às oito.
A realidade não se desfez. Ela não voltou à
sala de aula, nem viu a Srta. Dominguez perguntar se ela estava bem. Aurora fez
seu caminho para casa e passou a tarde em seu quarto, caminhando de um lado
para o outro. Por vezes fitava o lugar exato no qual o buraco de minhoca se
abriu mais tarde, naquela mesma noite, e passava as mãos pelos olhos, ansiosa.
Queria saber até onde aquilo ia levá-la. Se é que levaria à algum lugar. E
ainda se perguntava qual o mistério que envolvia aquela viagem. Beliscou-se em
algum momento, para ter certeza de que não estava dormindo.
Não estava. A dor que sentia era bem real. O
frio no estômago também. Naquele dia ela não tocou nos biscoitos que a mãe fez,
nem nos copos de suco que ela ofereceu. Lembrou-a apenas de levá-la à casa de
Amanda perto das sete da noite, para que ela desse um recado.
Quando a noite chegou, rezou para não voltar no
tempo nunca mais.
A rua da casa de Amanda estava silenciosa, mas
diversos carros paravam perto da calçada dela, e vários jovens, a maioria
colegas de Aurora e Amanda, corriam até a casa dela. Muitos dos garotos
populares caminhavam pelo jardim ridiculamente bonitos e sorridentes. Eles
estavam felizes.
-Mãe, para o carro aqui...
-Tudo bem, filha. Não precisa ter vergonha de
ir à uma festinha com sua mãe. A maioria daqueles garotos também veio...
-Não é isso, mãe. Eu só... Não é nada demais.
Pode parar o carro?
-Certo.
Ela desceu e tirou os óculos, porque não queria
ver nada do que aconteceria depois. Jogou-os no banco do passageiro e sorriu
para a mãe. Soltou os cabelos escuros e os deixou cair pelos ombros. Vestia um
jeans escuro e apertado e uma camiseta com o símbolo de sua casa em Hogwarts, Corvinal.
Respirou fundo e pisou firme nas calçadas pelas quais passou, até chegar à casa
de Amanda. As pessoas ainda entravam na casa e eram recebidas pelas amigas da
garota de olhos claros.
Ninguém nem ao menos a reconheceu.
Seu coração batia depressa, e seus dedos
estavam molhados de suor. A boca seca era ansiosa, e Aurora encheu-se de
coragem para fazer o que devia fazer. Todas as pessoas mostravam os rolos de
papel higiênico que prepararam para a chegada da garota esquisita, e Aurora
cutucou o ombro de Amanda, que estava de costas e virou-se sorridente, até ver
quem era.
-Mas... Ahm...
-Acho que não tem ninguém fantasiado aqui. - A
voz de Aurora era firme, grave e confiante. Todos os adolescentes na festa
pararam de andar e fizeram silêncio. Amanda arregalou os olhos um instante e
gesticulou com a boca, surpresa. Aurora continuou a olhá-la, e sentiu a brisa
morna da noite de primavera bater contra o corpo. Amanda cerrou os punhos e se
preparou para falar, mas Aurora a interrompeu. - Não, não minta mais. Não
precisa fingir que todo esse papel higiênico e esses sprays não são para mim.
Nem precisa se dar ao trabalho de gastar tantos esforços com isso.
-Do que você está falando? Está ficando doida?
- Ela tentou escapar, e todas as pessoas riram. Aurora sorriu, e meneou
levemente a cabeça, com uma confiança imperturbável. O sorriso radiante da
garota de olhos claros morreu.
-Não precisa agir desse jeito. Eu já sei, e seu
plano idiota acabou. Pode jogar toda essa droga em mim, porque eu não me
importo. Se você quer saber... Você tenta me diminuir porque sabe que não é tão
inteligente quanto eu. Você tenta me destruir porque conhece sua própria vida,
e quer acabar com as dos outros para não se sentir tão mal. Você não é só uma
pessoa baixa, como é mesquinha e nunca vai chegar a lugar nenhum. Sabe por que?
Porque gente como você não consegue dar nenhum passo pro futuro. Daqui há
alguns anos, Amanda, você vai ser passado.
Àquela altura todas as pessoas fitavam
admiradas o monólogo de Aurora, e boa parte delas começava a se afastar,
furtivamente, da casa de Amanda. A própria garota de olhos claros tinha as íris
mareadas e esperava pelo fim do discurso de Aurora.
-Se você quiser mudar seu futuro, ou ter algum,
é bom agir de forma mais consciente no presente.
A luz leitosa da lua lá em cima se tornou
difusa, até clarear o firmamento noturno e desvanecer a escuridão até tudo ao
redor ser banhado por feixes luminosos ardentes. Todos os rostos se tornaram
caveiras e os corpos viraram esqueletos, até sumirem. Os olhos azuis de Amanda
foram as últimas frações de realidade a desaparecer, e Aurora sentiu um
formigamento na testa.
Abriu os olhos e estava em seu quarto. A única
luz era a do abajur e iluminava o livro de física, na página 112. Ali estavam
os títulos de filmes com viagem no tempo, e os preceitos de Einstein sobre
teoria das Cordas e da Relatividade. Então percebeu que tudo o que viveu era um
sonho, e que não havia viajado no tempo de verdade. Aurora foi para a cama com
o corpo dolorido, cansada além do que seria considerado habitual, e com uma
tristeza mórbida, pelo que aconteceu mais cedo.
A humilhação que viveu foi real.
O dia seguinte foi cansativo desde o despertar.
Aurora fez sua higiene matinal, vestiu-se e tomou seu café da manhã mecanicamente.
Pegou sua bicicleta na garagem e colocou sua mochila nas costas, pedalando até
a escola. Demorou-se no percurso, porque queria adiar a chegada à escola. Prendeu
a bicicleta com o cadeado no estacionamento e caminhou com a cabeça erguida até
a entrada do prédio. Estranhamente, todas as pessoas a olhavam, mas ninguém ria
ou caçoava dela.
De maneira alguma.
Ao contrário, os alunos a encaravam com
espanto. Aurora entrou na sala de aula e procurou sua cadeira, lá no fundo, ao
lado do rapaz esquisito de cabelos desgrenhados, que sorriu para ela, cúmplice.
Aurora afundou-se na cadeira, sem entender o porquê daquilo.
-Sabe, o que fez ontem foi tipo: Wow. De
verdade. A nojentinha não se recuperou até agora. Dizem que ela nem quer voltar
ao colégio. - O rapaz de cabelos desgrenhados comentou à meia-voz. Aurora o
fitou com o semblante contraído. - O discurso sobre a burrice dela, ontem, na
frente da casa dela. Ela teve mesmo o que merecia. Todo mundo a apelidou de
Amanda rainha dos burros. Nossa, tem um pessoal passando o vídeo pelo Whats
App. Toda a cidade já sabe o que aconteceu.
-Sabe?
A professora de física, Sabrina Dominguez,
entrou na sala de aula e procurou entre os rostos o de Aurora Vilaça. Ao
encontrá-la, a analisou por alguns segundos. Ela sabia bem da sensação de Déjà
vu e do que ouvira da boca da garota no dia anterior, sobre as páginas que
devia estudar. Sabrina Dominguez já estudara o suficiente em sua vida para
suspeitar do que acontecera com Aurora ontem. Devia ser uma experiência surpreendente e misteriosa. Com
toda certeza assombrosa.
No dia 21 de Outubro de 2015.
***
Fernanda Medeiros
Isso é tudo, pessoal!
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