21 de outubro de 2015

Outubro Especial: Fernanda Medeiros

Déjà Vu

-Fiquem à vontade para ver o capítulo 5 do livro. Talvez eu faça uma prova surpresa na próxima aula, então... Se eu fosse vocês leria o capítulo. Bem, mas é só um conselho, aleatório. Não é como se fosse mesmo ter uma prova surpresa dia 23 de outubro. Nada disso. Não tem nada a ver mesmo, e se vocês... - A voz da professora de física foi interrompida pelo ruído estridente do sinal. Todos os cadernos foram fechados abruptamente. Todos os alunos fugiram da sala de aula como se fugissem de uma prisão.
Era uma rebelião diária.
Sabrina Dominguez acostumou-se com aquela rotina, porque ensinar física era sua paixão. A escola era o lugar aonde ela sentia que pertencia e, de tempos em tempos, alguns alunos a faziam ter a sensação de dever cumprido. E aquela manhã mormacenta de primavera parecia ser um desses tempos.
Lá no fundo da sala, como um ser antissocial, estava uma garota escondida atrás de óculos de aros grossos. Atrapalhada e aparentemente triste, fechava um livro pesado e o enfiava na mochila colorida. Levantou-se com os ombros caídos, olhar fixo no chão e lábios contraídos. Lembrou os tempos de criança da própria "Sabrina quatro olhos", numa época em  que ser nerd não era algo tão legal.
-Aurora..? - A professora usou de sua autoridade para chamar a aluna, que olhou para trás sem qualquer vestígio de expressão.
-Sim, srta. Dominguez.
-Aproxime-se. - Ela continuou. A garota percorreu a sala até o birô, e parou de andar, removendo a mochila do ombro, deixando-a encostada à perna, no chão. - Aconteceu alguma coisa? Você não parece muito bem. - A garota de 15 anos encolheu os ombros, como se não houvesse qualquer problema.
Mas os lábios contraídos permaneciam ali, incapazes de mentir.
-Posso ir?
-Pode. Boa tarde pra você. Estude as páginas 110 à 113. Vou tirar as questões de lá. - Sabrina piscou para a aluna, que ergueu as sobrancelhas, impressionada por um segundo. A tristeza escorreu por seu semblante mais uma vez, e ela deixou a professora sozinha na sala de aula.

Aurora Vilaça viu todos os alunos saírem e, como fazia todos os dias, propositalmente, esperou para ser a última a deixar a sala de aula. Não queria ouvir as provocações e as piadas que as garotas de cabelos bonitos e olhos claros geralmente faziam. Deixou a sala de aula e arrastou os pés pelo corredor vazio, quase agradecendo a professora por ter atrasado ainda mais sua saída, assim não havia sequer um adolescente por ali.
O sol inclemente da primavera castigava o pátio e os olhos desacostumados de Aurora arderam ao alcançá-lo. Para sua má sorte, um grupo de garotas conversava animadamente e ria de algo muito engraçado. A bicicleta de Aurora estava estacionada ao lado daquele grupo, e ela tomou um fôlego longo, antes de continuar a andar.
Pensou em diversas maneiras de fingir que estava sozinha, e imaginou-se em uma bolha de invisibilidade. Em nenhum momento fez contato visual com as meninas. Aurora conhecia uma delas. Amanda tinha cabelos castanhos e belos olhos azuis que conquistavam todos os garotos da turma. Seu sorriso era aparentemente distraído, mas Aurora sabia... Amanda era incapaz de compreender qualquer ideia minimamente inteligente. Era burra como uma porta.
-Ei... Vejam só, meninas. - Amanda riu. - Vocês já viram algo tão desengonçado?
-Não mesmo. Olha só o chapéu dela. - Outra falou, com uma risada ácida.
-E essa mochila? Parece que saiu do Festival Burning Man... - Uma terceira comentou.
-O que é o Festival Burning Man? - Amanda indagou. - Não importa. - Riu mais uma vez. Aurora pegou sua bicicleta e retirou o cadeado, para seguir ir para casa sem precisar ouvir mais asneiras das garotas. - Ei, menina! - Ouviu Amanda chamar. - Ei! Eu falei com você! - Aurora não se conteve e fitou o grupo de meninas, que se aproximava.
-O que vocês querem?
-Você vai estudar pra prova de física, não vai?
-É o que eu deveria fazer.
-Pois deveríamos fazer juntas. - Amanda parecia excitada com a ideia que acabara de ter. As outras seguidoras a observavam com estranheza. - Estou sem tempo para estudar porque tenho uma vida social para manter. Imagina que só nesse fim de semana eu tenho três aniversários para ir? Um deles vai ser uma festa à fantasia, só os nerds descolados vão estar lá, e tal. Acho que não vou dar conta disso.
-Claro que vai, Mands. - Uma das seguidoras tocou seu ombro, em forma de apoio.
-Mas você sabe que eu preciso arrumar um look decente para aparecer em todos esses eventos, e não quero repetir o cabelo em nenhum deles. Você sabe o quanto é difícil? Já não basta repetir a cor da unha? É desgastante... E o João Paulo fica no meu pé. Ele tem que entender que eu não quero mais garotos do ensino médio. Você já viu os garotos da faculdade? Eles sim são bonitos. E aqui em Santa fé eles vem de todas as partes de Minas. É incrível. Não preciso ficar com meninos do terceiro ano. - Amanda soltou uma avalanche de palavras.
As únicas que Aurora ouviu e ainda tentava juntar eram Nerds e Descolados. Para a garota que usava óculos de aros grossos e tinha cabelos lisos amarrados em um rabo de cavalo, as duas palavras não faziam sentido juntas. Nenhum sentido.
-E então? - Amanda cortou os pensamentos de Aurora.
-Então o que? - A garota perguntou, e as outras riram. Quando as gargalhadas cessaram, a expressão de Aurora fez com que Amanda suspirasse.
-Você quer ir à festa com a gente? Estudamos depois da festa. E então?
-Ah... Eu? - As meninas riram mais uma vez.
-É uma festa à fantasia, então você pode aparecer lá em casa às oito e a gente te leva.
Aurora não ouviu muito além. Ela estava perplexa o suficiente para aquiescer com a cabeça para tudo o que Amanda dizia. Nunca havia sido convidada para participar do círculo social de ninguém, e a possibilidade de aquilo acontecer parecia tão distante que, quando aconteceu, a cegou para uma realidade totalmente crua e impiedosa.
Dolorosa.

Todos os amigos de Amanda Cavalcante estavam parados à espreita das janelas que davam para a frente da casa dela. Havia gente escondida no primeiro andar da casa e atrás das cortinas das salas no andar inferior. Quando o carro da mãe de menina esquisita parou à frente da casa, todos riam baixinho e os mentores da brincadeira pediam silêncio. Amanda correu até a porta e passou os dedos pelos cabelos, penteando-os. Um formigamento leve provocado pela ansiedade subia por seus membros inferiores, e ela não conseguia parar de sorrir.
Abriu a porta radiante, e viu quando a garota desajustada cujo nome ela tentava lembrar tropeçou na calçada, antes de continuar a andar na direção da entrada da casa. Estava vestida com uma fantasia improvisada de algum desenho que Amanda pessoalmente não conhecia. Algo entre Dexter, do Laboratório de Dexter, e médico idiota, com um jaleco branco e aquele óculos enorme de aros grossos.
-Oi, Amanda... Então... Você ainda vai se arrumar? - A menina parecia ansiosa pela festa. Amanda não conseguiu controlar a risada e concordou com a cabeça.
-Mal posso esperar...
Era a deixa. Todas as luzes da casa se acenderam e apagaram e as janelas se abriram. As pessoas se amontoaram nos espaços abertos e jogavam papel higiênico e sprays de espuma branca. Os olhos da garota desajustada se arregalaram e ela deu alguns passos para trás. Toda aquela cena era tão divertida que Amanda ainda não conseguia esconder a excitação. Ela bateu palmas repetidas vezes, e deu alguns gritos. Todo o papel higiênico voava pelo ar e caía sobre a garota, que, àquela altura, chorava. Amanda não compreendeu o porquê do choro. Era apenas uma brincadeira da época de Halloween, uma festa muito comemorada em Santa Fé.
A menina deu as costas e correu para a rua, desaparecendo pela noite de brisa morna.

Aurora correu até a esquina mais próxima e ligou para a mãe. Escondeu-se entre os arbustos e se agachou. Sentia o odor de grama molhada e as baforadas da brisa úmida dos jardins das casas naquela vizinhança. Abraçou o próprio corpo e se permitiu sentir uma dor extenuante que cruzou o corpo.
Humilhação.
Quando o carro da mãe finalmente entrou na rua em que ela estava, Aurora ergueu-se e sacolejou os braços no ar. No caminho de casa ela viu que a mãe estava preocupada, e a humilhação pareceu ainda pior sentada no banco do carro, arrumada para uma festa à fantasia, com os olhos molhados e o nariz inchado de tanto chorar, como uma fracassada. Evitava fungar ou soluçar para não chamar atenção e trazer perguntas indesejadas, mas a mãe não lhe dirigiu a palavra, nem para consolar. Aurora agradeceu internamente por isso.
O caminho da porta da casa até o quarto foi longo demais. Ela retirou o jaleco assim que desceu do carro e colocou a mochila nas costas. Sentiu o peso dos livros, da roupa de dormir e dos produtos de higiene pessoal nas costas, e pensou na tarde perdida arrumando a bolsa para dormir na casa de Amanda. O nó em sua garganta se tornou ainda mais difícil de suportar.
Mas a porta do quarto se fechou. Ela deixou a mochila cair ali mesmo e foi até o espelho. Esfregou o rosto com uma toalha e retirou os vestígios da maquiagem discreta que a mãe fizera nela, mais cedo. O resto da fantasia foi ao chão em poucos segundos e Aurora tomou um banho demorado. A água caía sobre sua cabeça e massageava seus ombros, mas quando os olhos dela se fechavam, as únicas lembranças na memória eram de papel higiênico e espuma flutuando no ar. Ainda ouvia os gritos, vaias e risadas.
Mas a porta do quarto estava fechada. Ela sentiu-se protegida dentro do cômodo. E, depois do banho, desfez a mochila, retirando o livro e o caderno de física. Pensou que ao estudar esqueceria toda aquela história, e, com sorte, no dia seguinte ninguém lembraria.
Aurora sabia que seria piada por alguns meses.
Sua escrivaninha era grande, coberta de livros e anotações que ela fazia com frequência, sobre assuntos que gostava de estudar. Eram de cultura em geral, além das disciplinas do colégio. Curiosa, se aventurava pelos mais variados campos, porque gostava de aprender. Sua disciplina preferida era física, porque ali ela entendia como o mundo funcionava. Era uma explicação universal para cada uma das perguntas que habitou suas dúvidas de criança.
E, por um momento, ela esqueceu-se de tudo o que havia acontecido pouco tempo antes.
Abriu o livro na página 110, como a Srta. Dominguez recomendou. Teoria da relatividade de Einstein. Pegou o marca-texto para grifar as partes mais interessantes do texto, e pôs-se a ler. Depois de alguns minutos a leitura tornou-se interessante, porque falou de um tema fantástico. A possibilidade de viagem no tempo, segundo a teoria de Einstein, um tópico aberto para debates e estudos até aquela data.
Segundo a teoria, a gravidade em objetos maciços como estrelas e buracos negros fazia o espaço se curvar. Algo que Einstein chamava de Espaço-Tempo. Espaço-Tempo curvado significava Tempo curvado, que significava a possibilidade de viajar ao passado. E isso seria possível através de outra Teoria de Einstein. Cordas cósmicas supostamente criadas um segundo após o Big Bang seriam longas e gigantescas, com massa densa e pontos de gravidade que fariam o Espaço-Tempo se curvar. Einstein foi além, e teorizou sobre a possibilidade de manipular cordas cósmicas e buracos negros para viajar no tempo. Até construir buracos de minhoca para isso.
Viajar no tempo...
Aurora sonhou com a possibilidade de mudar seu passado e apagar aquele dia. Viu que o livro indicava diversos filmes que exploraram o tema de viagem no tempo. Feitiço do Tempo, A Máquina do Tempo, Efeito Borboleta, De Repente 30, De volta para o Futuro, De volta para o Futuro 2.
Os olhos da menina se arregalaram. Lembrava do filme De volta para o futuro 2. Naquela história o personagem principal viajava para o futuro, exatamente para o dia 21 de Outubro de 2015. Aurora ergueu as sobrancelhas e pegou o celular, olhando a data daquela noite. Somente a luz do abajur em seu quarto estava acesa, e focava os livros abertos sobre a escrivaninha. Quando a tela se acendeu, ela viu.
21 de Outubro de 2015.
Aquela era a data em que Marty McFly chegara ao futuro.
Aurora riu sozinha, e viu a coincidência como um motivo para descontrair sua tensão. Ela não queria lembrar do fato acontecido mais cedo. Tentava não pensar naquilo, e quanto mais não pensava, mais próxima estava de um buraco de minhoca, como os que Einstein propôs em seu estudo sobre a relatividade, Espaço-Tempo, as quatro dimensões, o passado, o futuro... Um carro voador e um cientista maluco. Sua cabeça girava em vários pontos e ela apoiou a testa sobre um livro, fechando os olhos por alguns segundos. Até sentir uma brisa mais fria nas costas e reabrir os olhos.
A menina girou o corpo e tomou o fôlego, pulando da cadeira. De pé, arrastou-se até a porta do quarto, colando as costas na superfície de madeira, assustada. Próximo à sua cama havia um buraco feito de luz e ondas rarefeitas de ar. Tremulava como a superfície de um rio depois de jogar uma pedrinha. Parecia com os efeitos especiais dos filmes aos quais Aurora assistia na TV. Tinha aproximadamente um metro de diâmetro e era como uma falha no tecido da realidade. Ela colocou as mãos sobre a boca e esperou parada. Esfregou os olhos e fitou o buraco novamente, arfando admirada.
O buraco tremeluziu, como se esperasse pelos próximos movimentos dela. Aurora caminhou cautelosamente até ele e estreitou os olhos. Buscava enxergar o que havia lá dentro e não percebeu quando foi engolida pela luz. Ela se deixou levar pela corrente.
A primeira coisa que enxergou foi o caderno aberto na matéria de física e a caneta preta que usou mais cedo. Ergueu os olhos e deu um salto na cadeira. Somente um menino de cabelos longos e desgrenhados ao seu lado notou o sobressalto, e a fitou como se a entendesse. Era perfeitamente normal adormecer na aula de física e acordar no susto.
-Fiquem à vontade para ver o capítulo 5 do livro. Talvez eu faça uma prova surpresa na próxima aula, então... Se eu fosse vocês leria o capítulo. Bem, mas é só um conselho, aleatório. Não é como se fosse mesmo ter uma prova surpresa dia 23 de outubro. Nada disso. Não tem nada a ver mesmo, e se vocês... - O sinal tocou, e os olhos de Aurora se arregalaram.
Ela percebeu que estava no passado. Observou todos os alunos correrem para fora da sala e o semblante cansado da Srta. Dominguez. O ar condicionado quebrado fazia com que a sala, àquela hora do dia, tivesse ares quentes de um mormaço quase infernal. Aurora passou as costas da mão pela testa e levantou-se para juntar seu material, ainda aturdida sobre o que estaria acontecendo.
-Aurora..? - Ela ouviu a professora chamar.
Caminhou até o birô da Srta. Dominguez, com a mochila nas costas, e esperou pelo que ela falaria. Ela já sabia que a mulher perguntaria se ela estava bem. Estranhamente, Aurora sentia-se ótima.
-Sim, Srta. Dominguez.
-Aproxime-se. - A professora queria que ela chegasse mais perto, e assim ela fez. - Aconteceu alguma coisa? Você não parece muito bem. - Aurora meneou a cabeça, dando de ombros. Queria poder dizer que voltara ao passado e que aquela era a coisa mais maravilhosa que havia acontecido em sua vida, mas fingiu um semblante triste, para poder passar sem suspeitas.
-Posso ir?
-Pode. Boa tarde pra você. Estude as páginas 110 à 113. Vou tirar as questões de lá.
Aurora acenou para a professora e saiu da sala depressa. Queria correr até o estacionamento para gritar com Amanda e socar sua cara bonita de olhos claros e sorriso perene. Até pensar no porquê de ter voltado no tempo. Em todos os filmes e livros aos quais teve acesso sobre o assunto de viagem no tempo, havia alguma missão para ser resolvida e os personagens só retornavam ao presente depois de resolver todo o problema. Seu problema era claro, ela sofrera com uma humilhação diante de todos os adolescentes da cidade de Santa Fé.
Mas a solução era obscura para Aurora.
O sol inclemente daquela hora era marcante. Ela lembrava dele, e do grupo de meninas. Ao vê-las ali, sentiu medo. Sabia que elas a abordariam e dariam o bote. Sabia que elas queriam pregar uma "peça de halloween" nela, e queria esmagar a cara delas no asfalto, mas pensou em uma solução. A mais correta pareceu ser a que ela usou. Pegou sua bicicleta como havia feito antes, soltou o cadeado, ouviu as piadas com o festival do Burning Man, e esperou Amanda chamá-la.
-Ei! Eu falei com você! - Aurora olhou para trás, e viu que elas pareciam ardilosas. Algo que não havia reparado antes. A nova perspectiva deixou a intenção delas muito mais clara.
-O que vocês querem? - Perguntou, para fazê-las falar sua proposta.
-Você vai estudar pra prova de física, não vai?
-É o que eu deveria fazer. - "E vocês também." Aurora pensou.
-Pois é o que nós deveríamos fazer juntas. Estou sem tempo para estudar porque tenho uma vida social para manter. Imagina que só nesse fim de semana eu tenho três aniversários para ir? Um deles vai ser uma festa à fantasia, só os nerds descolados vão estar lá, e tal. Acho que não vou dar conta disso.
-Claro que vai, Mands. - A outra falou. Aurora engoliu em seco para não jogar a bicicleta em cima de Amanda e quebrar um dente dela, para ela ter mais um problema no fim de semana para dar conta.
-Mas você sabe que eu preciso arrumar um look decente para aparecer em todos esses eventos, e não quero repetir o cabelo em nenhum deles. Você sabe o quanto isso é difícil? Já não basta repetir a cor da unha? É desgastante... - Ela continuou a tagarelar por algum tempo, e Aurora esperou ansiosamente pelo convite. - E eu queria que você fosse a essa festa. Leva suas roupas, vai fantasiada e a gente estuda depois da festa. E então?
Aurora sabia que aquela era sua deixa.
-Então... O que? - As meninas riram, mas antes que as gargalhadas pudessem cessar, Aurora continuou. - Hein, Amanda? Essa festa vai ser na casa de quem? Na sua? E o que os seus pais vão achar dessa festa quando souberem? E quando souberem que você vai encher a casa com seus amiguinhos pra fazer uma "brincadeira" comigo? Hein? Então o que?! - Ela falou agressivamente para Amanda. O semblante chocado da outra parecia genuíno.
-Do que você está falando, sua louca?
-Não se faça de desentendida. Eu conheço você. Já vi De repente 30 e sei que não posso confiar em gente como você. E você pode ser o sujo e o mal lavado agora! Você é burra e acha que pode fazer os outros de burros também? Não pode! Não tem esse direito!
O sol começou a se distorcer em uma luz especialmente forte. A voz de Aurora começou a vacilar e o estacionamento desapareceu. O rosto de Amanda e suas amigas esvaeceu, deixando seus esqueletos à mostra até desaparecerem também. E a garota sentiu o corpo ser puxado por uma corrente forte que a levou para o nada. Com mais alguns estalos em sua mente, e o ar foi roubado dos pulmões dela.
Quando voltou a si, Aurora estava sentada em sua cadeira, na sala de aula.
-Fiquem à vontade para ver o capítulo 5 do livro. Talvez eu faça uma prova surpresa na próxima aula, então... Se eu fosse vocês leria o capítulo. Bem, mas é só um conselho, aleatório. Não é como se fosse mesmo ter uma prova surpresa dia 23 de outubro. Nada disso. Não tem nada a ver mesmo, e se vocês... - O sinal tocou. Aurora viu todos os alunos correrem mais uma vez e cerrou os dentes. Voltou ao começo. Aquilo devia ter algum significado.
Ergueu-se e fechou os cadernos, serrilhando os dentes e soltando o ar pela boca depois. Precisava pensar. Tinha que entender o que estava fazendo de errado. Em qual ponto deveria agir. Mas já não sobrava paciência. Ansiava por vingança contra Amanda e a possibilidade parecia cada vez mais complicada. Até uma ideia absurda e sombria passar por sua mente. Precisaria fazer tudo da forma correta, ou ficaria presa naquele looping temporal para sempre.
-Aurora..? - A Srta. Dominguez chamou-a, e ela virou-se para a professora.
-Sim, srta. Dominguez.
-Aproxime-se. - Aurora caminhou até ela esperou pelas perguntas. - Aconteceu alguma coisa? Você não parece muito bem.
-Não, posso ir? - A garota tentou não parecer impaciente, porém, não conseguiu. A professora não se importou com o tom usado por ela, e sorriu condescendente.
-Pode. Boa tarde pra você. Estude as páginas...
-110 à 113, eu sei! Vou tirar dez! Até semana que vem, Srta. Dominguez! - Aurora se adiantou para sair da sala de aula.
-É... É... 110 à 113... - A professora perplexa ficou dentro da sala, sentada, fitando o nada.

Depois da caminhada pelos corredores vazios até o estacionamento, veio a compreensão. E Aurora arquitetou seu plano. Soltou sua bicicleta, desprendeu o cadeado, evitou as meninas até Amanda falar consigo, foi até elas, conversou com elas e viu que, a cada vez que revivia a situação, Amanda parecia mais cruel. Ela tagarelava sobre João Paulo, sobre meninos da faculdade, sobre looks de festas e outras frivolidades, e fez a proposta para Aurora, que seguiu o roteiro, como já havia acontecido antes.
-Então... O que?
-Você quer ir à festa com a gente? Estudamos depois da festa, amanhã de manhã. E então?
-Ah... Eu? - Ela ouvia as risadas, o olhar frígido de Amanda, e esperava.
-É uma festa à fantasia, então você pode aparecer lá em casa às oito e a gente te leva.
-Certo, eu vou. Chego na sua casa às oito.
A realidade não se desfez. Ela não voltou à sala de aula, nem viu a Srta. Dominguez perguntar se ela estava bem. Aurora fez seu caminho para casa e passou a tarde em seu quarto, caminhando de um lado para o outro. Por vezes fitava o lugar exato no qual o buraco de minhoca se abriu mais tarde, naquela mesma noite, e passava as mãos pelos olhos, ansiosa. Queria saber até onde aquilo ia levá-la. Se é que levaria à algum lugar. E ainda se perguntava qual o mistério que envolvia aquela viagem. Beliscou-se em algum momento, para ter certeza de que não estava dormindo.
Não estava. A dor que sentia era bem real. O frio no estômago também. Naquele dia ela não tocou nos biscoitos que a mãe fez, nem nos copos de suco que ela ofereceu. Lembrou-a apenas de levá-la à casa de Amanda perto das sete da noite, para que ela desse um recado.
Quando a noite chegou, rezou para não voltar no tempo nunca mais.

A rua da casa de Amanda estava silenciosa, mas diversos carros paravam perto da calçada dela, e vários jovens, a maioria colegas de Aurora e Amanda, corriam até a casa dela. Muitos dos garotos populares caminhavam pelo jardim ridiculamente bonitos e sorridentes. Eles estavam felizes.
-Mãe, para o carro aqui...
-Tudo bem, filha. Não precisa ter vergonha de ir à uma festinha com sua mãe. A maioria daqueles garotos também veio...
-Não é isso, mãe. Eu só... Não é nada demais. Pode parar o carro?
-Certo.
Ela desceu e tirou os óculos, porque não queria ver nada do que aconteceria depois. Jogou-os no banco do passageiro e sorriu para a mãe. Soltou os cabelos escuros e os deixou cair pelos ombros. Vestia um jeans escuro e apertado e uma camiseta com o símbolo de sua casa em Hogwarts, Corvinal. Respirou fundo e pisou firme nas calçadas pelas quais passou, até chegar à casa de Amanda. As pessoas ainda entravam na casa e eram recebidas pelas amigas da garota de olhos claros.
Ninguém nem ao menos a reconheceu.
Seu coração batia depressa, e seus dedos estavam molhados de suor. A boca seca era ansiosa, e Aurora encheu-se de coragem para fazer o que devia fazer. Todas as pessoas mostravam os rolos de papel higiênico que prepararam para a chegada da garota esquisita, e Aurora cutucou o ombro de Amanda, que estava de costas e virou-se sorridente, até ver quem era.
-Mas... Ahm...
-Acho que não tem ninguém fantasiado aqui. - A voz de Aurora era firme, grave e confiante. Todos os adolescentes na festa pararam de andar e fizeram silêncio. Amanda arregalou os olhos um instante e gesticulou com a boca, surpresa. Aurora continuou a olhá-la, e sentiu a brisa morna da noite de primavera bater contra o corpo. Amanda cerrou os punhos e se preparou para falar, mas Aurora a interrompeu. - Não, não minta mais. Não precisa fingir que todo esse papel higiênico e esses sprays não são para mim. Nem precisa se dar ao trabalho de gastar tantos esforços com isso.
-Do que você está falando? Está ficando doida? - Ela tentou escapar, e todas as pessoas riram. Aurora sorriu, e meneou levemente a cabeça, com uma confiança imperturbável. O sorriso radiante da garota de olhos claros morreu.
-Não precisa agir desse jeito. Eu já sei, e seu plano idiota acabou. Pode jogar toda essa droga em mim, porque eu não me importo. Se você quer saber... Você tenta me diminuir porque sabe que não é tão inteligente quanto eu. Você tenta me destruir porque conhece sua própria vida, e quer acabar com as dos outros para não se sentir tão mal. Você não é só uma pessoa baixa, como é mesquinha e nunca vai chegar a lugar nenhum. Sabe por que? Porque gente como você não consegue dar nenhum passo pro futuro. Daqui há alguns anos, Amanda, você vai ser passado.
Àquela altura todas as pessoas fitavam admiradas o monólogo de Aurora, e boa parte delas começava a se afastar, furtivamente, da casa de Amanda. A própria garota de olhos claros tinha as íris mareadas e esperava pelo fim do discurso de Aurora.
-Se você quiser mudar seu futuro, ou ter algum, é bom agir de forma mais consciente no presente.
A luz leitosa da lua lá em cima se tornou difusa, até clarear o firmamento noturno e desvanecer a escuridão até tudo ao redor ser banhado por feixes luminosos ardentes. Todos os rostos se tornaram caveiras e os corpos viraram esqueletos, até sumirem. Os olhos azuis de Amanda foram as últimas frações de realidade a desaparecer, e Aurora sentiu um formigamento na testa.
Abriu os olhos e estava em seu quarto. A única luz era a do abajur e iluminava o livro de física, na página 112. Ali estavam os títulos de filmes com viagem no tempo, e os preceitos de Einstein sobre teoria das Cordas e da Relatividade. Então percebeu que tudo o que viveu era um sonho, e que não havia viajado no tempo de verdade. Aurora foi para a cama com o corpo dolorido, cansada além do que seria considerado habitual, e com uma tristeza mórbida, pelo que aconteceu mais cedo.
A humilhação que viveu foi real.

O dia seguinte foi cansativo desde o despertar. Aurora fez sua higiene matinal, vestiu-se e tomou seu café da manhã mecanicamente. Pegou sua bicicleta na garagem e colocou sua mochila nas costas, pedalando até a escola. Demorou-se no percurso, porque queria adiar a chegada à escola. Prendeu a bicicleta com o cadeado no estacionamento e caminhou com a cabeça erguida até a entrada do prédio. Estranhamente, todas as pessoas a olhavam, mas ninguém ria ou caçoava dela.
De maneira alguma.
Ao contrário, os alunos a encaravam com espanto. Aurora entrou na sala de aula e procurou sua cadeira, lá no fundo, ao lado do rapaz esquisito de cabelos desgrenhados, que sorriu para ela, cúmplice. Aurora afundou-se na cadeira, sem entender o porquê daquilo.
-Sabe, o que fez ontem foi tipo: Wow. De verdade. A nojentinha não se recuperou até agora. Dizem que ela nem quer voltar ao colégio. - O rapaz de cabelos desgrenhados comentou à meia-voz. Aurora o fitou com o semblante contraído. - O discurso sobre a burrice dela, ontem, na frente da casa dela. Ela teve mesmo o que merecia. Todo mundo a apelidou de Amanda rainha dos burros. Nossa, tem um pessoal passando o vídeo pelo Whats App. Toda a cidade já sabe o que aconteceu.
-Sabe?

A professora de física, Sabrina Dominguez, entrou na sala de aula e procurou entre os rostos o de Aurora Vilaça. Ao encontrá-la, a analisou por alguns segundos. Ela sabia bem da sensação de Déjà vu e do que ouvira da boca da garota no dia anterior, sobre as páginas que devia estudar. Sabrina Dominguez já estudara o suficiente em sua vida para suspeitar do que acontecera com Aurora ontem.  Devia ser uma experiência surpreendente e misteriosa. Com toda certeza assombrosa.
No dia 21 de Outubro de 2015.

***

Fernanda Medeiros
Isso é tudo, pessoal!

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Leio na Rede, Gaby Monteiro

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